sábado, 20 de outubro de 2007

Considerações sobre o filme "Show de Truman"


O filme é a história irreal de um personagem que tem seus passos acompanhados permanentemente por milhões de pessoas em todo o mundo através de câmaras espalhadas por uma cidade-cenário construída em uma ilha fictícia. Truman Burbank leva uma vida condicionada e seu comportamento obedece a um “script” pré-determinado pelo diretor do intrigante “realyte-show”.
Desde o seu nascimento há todo um processo que deve levar Truman a não questionar e tampouco contestar a realidade que lhe é apresentada. Com uma vida cotidiana sistemática e mecanicista, não sobra tempo para o imprevisível e o imponderável. Medos e fobias são inseridos em sua vida para que não busque o novo, o explorável, o desconhecido. A cena do afogamento do seu “pai”, num passeio de barco em alto mar, com o jovem Truman pedindo ao pai para continuarem navegando, apesar da tempestade, tem como objetivo causar culpa e, ao mesmo tempo, impedir que o jovem deixe a “ilha”, movido pelo pavor das águas turbulentas. A queda de uma peça de avião no meio da rua, também condiciona para uma aversão à viagens aéreas. Há todo um aparato “ideológico”, com mídia altamente direcionada, que mostra à exaustão, o lado belo da ilha em contraste com a realidade nua e crua do “mundo de fora”. O gesto repetitivo de cumprimentar com um “bom dia” todos da localidade, sempre com um sorriso acolhedor dos interlocutores. O próprio sistema de ensino que pregava a desnecessária busca pelo novo, pelo espírito desbravador inerente ao ser humano: para que ser um novo Magalhães (circunavegação) se tudo já foi descoberto? Dizia a professora primária. Truman vivia em uma imensa caixa de Skinner, onde todos os seus comportamentos e ações eram reflexos do meio em que viva. Ele necessitava de respostas que sua subjetividade jamais encontraria naquele simulacro criado por um diretor megalomaníaco.
Truman, ao se envolver involuntariamente com uma personagem – a atriz Sylvia – acaba por se apaixonar e dá início a um processo de libertação. Num primeiro momento, os produtores do “realyte show” detectam o que não estava no script e tentam fazer a história voltar ao seu curso normal. Porém, era tarde demais, a mente humana não funciona como uma tábula rasa, ou um computador. O ser humano não pode se reduzir a um simples objeto manipulável. Está em jogo talvez aquilo que o torna o mais singular dentre todas as espécies que habitam o planeta: a sua singularidade e subjetividade, a necessidade de se fazer “presente”, fazer a sua “história”. Aliás, a esse respeito, Walter Benjamin, filósofo alemão do século passado, afirma “O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente”
[1].
Na ilha Seahaven nada era real e tudo era real ao mesmo tempo. Durante toda a sua vida Truman foi educado através de reflexos condicionados, por comportamentos operantes, com reforços positivos (trabalho, interação e vida social, educação, etc.) e reforços negativos (oposição por sua busca do novo, do explorável, etc.). No filme, Cristof, o criador do “realyte show”, ao conceder uma entrevista a um programa de televisão é interpelado por uma telespectadora, a atriz Sylvia, por quem Truman se apaixonara, que pergunta se o diretor nunca se sentiu culpado pelo “espetáculo” por ele criado. Ele responde que deu a Truman a chance de viver uma vida normal. Que o mundo fora da ilha é que é doentio. A ilha Seahaven é o modelo de mundo. Sylvia retrucou dizendo que Truman não era ator e sim um prisioneiro, ressaltando a maldade que haviam feito com ele. Cristof argumentou que se de fato Truman quisesse sair poderia fazê-lo a qualquer tempo; apresentava mera ambição, faltando determinação para ir em busca da verdade. Tudo que se poderia proporcionar de uma vida normal ele tinha, com o diferencial de que era poupado das desventuras, tudo que os telespectadores queriam para suas vidas. Concluiu afirmando que Truman preferia sua cela em Seahaven ao mundo além da ilha.
No final, fica provado que Cristof estava enganado, pois Truman, num gesto de ironia, cumprimenta os telespectadores do ‘”show da vida” e deixa as instalações do mega-estúdio de televisão para viver sua “vida de verdade”, sem presilhas ou amarras.



[1] BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, SP: Editora Brasiliense, 1994. p. 169.

Luis Guilherme M. Gaya

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